Sobre ter assistido a Retratos Fantasmas
Um texto de Toinho Castro
Tempos atrás, lá em Recife, devia ser fins da década de 1980 ou início dos 1990, seguia eu pelo passeio central da avenida Conde da Boa Vista, no centro da cidade, quando avistei Roberval, caminhando na minha direção. Mal no encontramos ele exclamou: Tu viu aquele filme de ontem?! Já sabia que ele estava falando de Do mundo nada se leva, filme de Frank Capra, realizado em 1938, que havia sido exibido na televisão na noite anterior, numa Sessão Coruja da vida. Saímos juntos, eu e Roberval, pela cidade, comentando o quanto havíamos amado o filme, o quanto era incrível.
Éramos amantes do cinema, mas éramos filhos da televisão.
Com minha mãe aprendi a amar o cinema, com o amor dela pelo cinema. Mesmo sem ter visto nenhum grande filme. Mas vi os grandes filmes eventualmente e me apaixonei. Vi os filmes que ela viu… Suplício de uma saudade, Verão de 42, que então chamava-se Houve uma vez um verão, Candelabro italiano, Bonequinha de luxo e outros tantos de uma lista interminável. Todos na TV.
Depois vieram os grandes filmes europeus, alternativos, japoneses. Bergman, Antonioni, Fellini, Kurosawa, Pasolini, Truffaut, Godard. Os grande brasileiros como Glauber, Roberto Farias, Nelson Pereira, Zé do Caixão, numa outra lista também sem fim. Tudo na televisão, seja na programa rotineira dos canais abertos, seja nas fitas de VHS das locadoras que tanto frequentei. O cinema passava pela TV, na maior parte das vezes dublado e com intervalos comerciais; e mesmo com cortes. E ainda assim amei aqueles filmes.
Lembro que certa vez, vi anunciar que seria exibido A noite, de Antonioni, na TVU, o canal universitário da Universidade Federal de Pernambuco, que, creio, repetia o sinal de alguma outra emissora do Sudeste. Fiquei todo animado com a possibilidade de ver aquele filme pela primeira vez. Me organizei todo, comprei fita pra gravar no videocassete, e logo antes das 23h, horário marcado, no dia fatídico, me pus de plantão em frente à TV.
Às 23h em ponto a TV Universitária saiu do ar abruptamente, dando por encerrada a programação.
Em algum lugar do Brasil A noite foi exibido normalmente. Mas para a TVU, era caso encerrado. Assisti tempos depois, em VHS mesmo. Um filme que até hoje eu amo muito. Com Marcello Mastroianni, Jeanne Moreau e Monica Vitti. Escrevo esses nomes e é como escutar minha mãe falando.
O cinema mesmo veio depois da televisão. Nesse momento em que escrevo, penso que os primeiros filmes no cinema que me recordo de ter assistido, foram A Noviça Rebelde e um filme de Mazaroppi, numa sessão dupla, com minha irmã e meus primos, no cine Moderno, na praça Joaquim Nabuco, no centro de Recife, no dia que estourou a cheia de 75! Outra sessão que me lembro é de 20.000 léguas submarinas, com Kirk Douglas e Peter Lorre, com meu irmão, creio que no Art Palácio. Da adaptação de Verne, me impressionou o fundo do mar e seus mistérios. Era o cinema agindo em mim.
Frequentei todos os cinemas do centro, e alguns cinemas de bairro. Sei seus nomes de cor(ação), sei onde ficava cada um. Suas salas estão impregnadas na minha memória, com seus detalhes, histórias, personagens. São cinemas que existem, suspenso em algum lugar, de alguma maneiras. Os vi morrendo.
Havia esse grupo de amizades que, como eu, amavam o cinema. E conversávamos tanto. Frequentávamos aquelas salas juntos. Emendávamos duas três sessões, quando isso era permitido. Chegávamos no meio de um filme e assistíamos o começo na sessão seguinte.
Quando eu e meu amigo Toni assistimos The Wall, de Alan Parker, no São Luís, na última sessão, do último dia, e achávamos que nunca mais veríamos aquele filme outra vez, saímos do cinema, tarde da noite, e demos de cara com o Capibaribe. O memso rio da enchente de 1975, quando na outra margem, eu assistira A noviça rebelde. A imagem do rio causou-nos uma forte impressão. Como se tivéssemos saído de um filme e entrado em outro. Talvez tenha sido mesmo isso.
Pensando bem, agora, os primeiros filmes que vi projetados numa tela, foi na rua, lá pertinho de casa. Um senhor que tinha um projetor de 16mm, talvez, que estendia um lençol em plena rua e projetava adaptações curtíssimas, coisa de minutos, de filmes de Hollywood. lembro de Se meu fusca falasse, e também de A vida de Cristo. Um dos filmes que ele projetava, me assombra até hoje: O Papafigo do Caçote. Pesquisem.
Eu, Vânia e Mísia, emocionados e chorando com Cinema Paradiso e a projeção final dos beijos censurados pelo padre. E minha mãe quando assistiu ao memso filme, se emocionou também. Ela lembrou que, quando menina em Natal, o Padre Martins cortava todos os beijos dos filmes, no cinema Paroquial.
Eu poderia passar horas aqui, escrevendo sobre uma vida de amor pelo cinema. Aos 57 anos, lembro de tudo, e ainda frequento os cinemas que nos restaram, nos shoppings, digitais, com combos de coisas pra comer.
Tudo isso me leva a Retratos fantasmas, de Kleber Mendonça Filho.
Inevitavelmente.
Que difícil falar sobre esse filme. Porque o vivi. Como amigo de Kleber, desde os tempos de faculdade, frequentei aquele apartamento, nele tão bem retratado, e aqueles cinemas. E a desintegração em pornografia e igrejas. Muitas vezes com ele e nossa turma de amigos e amigas. Éramos encantados pelas telas e os cinemas formavam, conosco, um organismo. Era uma extensão das nossas vidas e da nossa amizade. E estavam conectados aos discos que escutávamos, às festas que dávamos e aos nossos desejos de mudar a vida. As nossas vidas.
Com discos de Lou Reed
nas mãos,
sentamos junto ao cinema
São versos que escrevi pra Vânia, e que mostra como tudo fluía entre filmes, músicas, livros e outras jornadas da alma. Estamos, pois, todos e todas, naquele filme. Naquilo que ele anseia e projeta.
Em Retratos fantasmas, que assisti pela primeira vez num corte de 50 minutos, estão todos os encontros que nós, nossa turma, tivemos na sala escura, na bilheteria, no hall de entrada, olhando cartazes e fazendo promessas de novas sessões. De fazer filmes. E aí é que o filme é lindo, o engendrar do cinema. Do fazer cinematográfico. Renato Russo canta numa canção, Vamos fazer um filme. O quanto há de juvenil e esperançoso nessa proposta. E como fazer cinema é estar numa cidade, mergulhado no seu eco sistema. Não tem cinema sem ruas, sem amigos que se encontram para fazer algo incrível, ou se perder na noite, como Rizzo e Joe Buck em Midnight Cowboy. Ruas e cinemas, daí os cinemas de rua serem tão orgânicos.
Se os cinemas de rua estão morrendo em toda parte, é porque há uma guerra em curso. Uma guerra contra a rua, contra os da rua.
Retrato fantasmas é sobre essa família que gira em torno do cinema. E sobre como contar essa história de uma cidade e seus cinemas. De um apartamento onde nasce o cinema. Penso que sempre que alguém aprende os primeiros rudimentos, e se aventura com uma câmera qualquer, com suas amizades, essa pessoa está inventando o cinema. Kleber inventou o cinema naquele apartamento da primeira das três partes do filme. Aquele apartamento que Joselice, sua mãe, inventou e que se tornou um espaço de invenção para a família cinematográfica.
Uma das grandes alegrias desse filme, para mim, é ver Joselice viva. Joselice, que morreu tão jovem. Mais jovem que nós, hoje.
Aquele apartamento, Joselice tirou dos sonhos. Como os filmes. E nele aconteceram filmes, muitos, tantos. Amigos e amigas se revezavam em mirabolantes ideias e fazeres e invenções. E hoje vemos Kleber fazendo filmes que correm o mundo, a despeito da morte dos cinemas de rua e da transformação dos sobreviventes e shopping centers de imagens em movimento. Com Retratos fantasmas, o cinema respira aliviado. O cinema, a outra casa de Kleber. Isso é a segunda parte do filme, o cinema enquanto segunda casa. E existe também uma guerra em curso contra a casa, esse espaço de onde a gente sai para o mundo.
Lembro de quando saí de Contatos Imediatos, de Spielberg, e eu era a pessoa mais feliz do mundo. De casa para o mundo. No cinema há algo de familiar, de retorno, de reencontro. Casa. Aprendi com o filme muita coisa que não sabia sobre os cinemas de Recife, sobre essas casas em que vivi tanta coisa. A pesquisa afiada deu ao filme uma dimensão de resgate. A história do Art Palácio como ideia do nazismo nos trópicos, assustadora e tangível. Não se deu, mas a história não perece, e permanece. O mesmo Art Palácio em que trabalho seu Alexandre, projecionista, ou Homem de projeção, como Kleber batizou seu curta sobre ele.
O homem que fechou seu Art Palácio com chave de lágrimas.
E como ele, outros cinemas foram fechando e virando igrejas. E lojas. E vãos abandonados. E mesmo criaturas urbanas difíceis de descrever. Numa cidade que vai digerindo seus mortos.
Um filme sobre o passado, que desperta alguma nostalgia, mas que me faz olhar para o futuro. Sobre o que queremos do mundo, das cidades e das nossas casas. Sobre o que queremos encontrar quando andamos pelas ruas. Quando, agora, ousamos andar pelas ruas. O horizonte plano de Recife devastado de arranha-céus e farmácias templos ou vitrines iluminadas com cartazes de filmes e amplos espaços para ver e viver a cidade? Qualquer olhar sobre o passado trata-se de pensar o futuro.
Aurora sem aurora,
cais sem cais
e nunca,
nunca mais.
Escrevi isso em outro poema, um tanto pessimista diante do apocalipse imobiliário que varreu a cidade de Recife. Mas Retratos fantasmas, enquanto carta de amor, serve como esperançoso fio narrativo de espaços diferentes de convívio, de troca. Seja nas nossas casas, nas ruas, ou num cinema. Saímos do filme nos perguntando porque deixamos tanta coisa se perder. E o que queremos daqui pra frente.
Eu quero uma cidade com cinemas. Uma cidade aberta.
Uma cidade de Jomard Muniz de Brito. Uma cidade de de Lia de Itamaracá, de Kátia Mesel. Uma cidade do Teatro do Parque, do cinema São Luís, da praça dos Sebos. Um lugar de onde se olhar o rio, ou o mar.
Retratos fantasmas é uma jornada memória adentro, através de ruínas e portais. Lembro de uma passagem de A história sem fim, de Michael Ende, em que o personagem, Bastian, exuma suas memórias numa espécie de mina profunda, e suas lembranças são finas lâminas translúcidas, que ele precisa manusear com muito cuidado. No filme tem essa cena, em que Kleber manuseia, com luvas, páginas de jornais no arquivo do Diário de Pernambuco, virando suas páginas como se virasse ruas e praças, de onde emergem uma cidade que resiste.
Isso a que chamamos de civilização é uma camada mal posta de cal, tóxica e aniquilante, mas mais para quem está acima dela. Embaixo, a vida ferve, fermenta, erode, consome, pronta a irromper convulsionada.
[Do meu livro, Imbiribeira]
Uma cidade transformada em cemitério de cinemas. E sentimos, sob o calçamento, a vida vibrando a 24 quadros por segundo. Kleber sentiu essa vibração e percorreu suas trilhas em Retratos fantasma, pra falar de amor, de cinema, de mãe, de cidade, de amizades e de espanto. E foi generoso o suficiente para que nos incluir como companheiros desse caminho. Apesar de tudo, de todo porcelanato, encontramos nessa trajetória, uma cidade viva. Uma cidade que explode em carnaval, em música e teatro, em filmes e no simples ato de debruçar-se no parapeito da ponte e olhar o rio Capibaribe.
Eu poderia seguir divagando sobre Retratos fantasmas, sobre Recife e minhas amizades, por horas, por dias. Mas vou deixando-me por aqui, longe de Recife, mas dela impregnado, dela imantado. Vibrando nos mesmo 24 quadros por segundo em que ela vibra sua vida prestes a emergir.
Nunca esquecerei dos cinemas que amei. E aguardo ansioso que algo mude, para que possamos todas e todos viver numa cidade melhor, que seja para as pessoas, e não essa estranha assombração desalmada, de portarias, garagens e cinemas mortos.
Uma fábula
Você soube, Toinho, que o Cine Fantasmo fechou suas portas, suas loucas portas? Aquelas portas por onde passamos tantas vezes com o velho pessoal do beco das luzes, quando ainda se viam as luzes pelo beco. Nunca mais vi ninguém daquela turma e o beco foi o primeiro a sumir. Juntaram duas quadras de velharias e sobrados, cercaram com tapumes e meses depois só havia vidro, alumínio, gente bonita e lâmpadas econômicas que espantaram as velhas luzes… Para as zonas perdidas da cidade. Ali o pessoal se dispersou. Dizem que Melkzedek saiu em busca das luzes, dizem que comprou uma bússola que apontava para elas. Rumou na direção dos ponteiros e nunca mais foi visto. Nem ele, nem as luzes.
E agora, Toinho, que não teremos mais as sessões da madrugada quando era permitido beber, e bebíamos para entender e atravessar a barra pesada dos filmes que passavam no Cine Fantasmo. Filmes que nunca foram vistos em outros lugares. Como aquelas luzes. Às vezes penso que se pularmos a cerca daquele condomínio e nos escondermos pela noite adentro e observarmos atentamente, talvez com a ironia daquela época, veremos as luzes. Talvez, Toinho, se a gente sentar daqui a 20 anos entre os carros do estacionamento em que se transformou o prédio do Cine Fantasmo, talvez a gente possa assistir aqueles estranhos filmes projetados no vazio. Talvez Melkzedek reapareça.
[Do meu novo livro, que tá saindo do forno]
PS. O título Cinema Show, é uma referência a uma canção, The Cinema Show, da banda inglesa Genesis, do seu disco Selling England by the Pound, de 1973. Eu e Mísia amamos essa música.
Can she be late
for her cinema show?