Texto de Toinho Castro
O Rei morreu, viva o rei.
Agora que Pelé se foi e já teve tudo quando era notícia, depoimento, frases soltas, entrevistas, artigos, curiosidades, eu posso escrever esse pequeno texto sobre meu encontro com o Rei do Futebol.
Devia ser os anos 70, pois recordo que eu era bem criança.
Estávamos eu e minha mãe, disso lembro bem, no Aeroporto dos Guararapes, no Recife. Era o passeio dos domingos, dos fins de semana. Ir para o aeroporto, ver os aviões, os peixes na praça Salgado Filho, projeto paisagístico, hoje sei, de Burle Marx, onde havia dois pirarucus enormes. Certa vez, um moço apreciando a majestade (reis também) dos animais, ali junto a nós, comentou com a minha mãe: Esse peixe é o Operário Cru. Isso virou uma piada interna na família, e até hoje não resisto a chamar qualquer pirarucu de operário cru.
Nesse dia estávamos eu e minha mãe, como eu disse, olhando a vitrine de uma lojinha que tinha aqueles carrinhos de ferro que eu amava, os Matchbox. Não eram baratos, mas volta e meia eu saía do aeroporto com um ou dois. O mesmo balcão emendava como balcão do tradicional Café Palheta, onde meu pai tomava café, onde certamente havia doces e refrigerante. O aeroporto era lindo e é triste pensar que aquilo foi destruído. Encantava-me a escadaria numa espécie de espiral, que levava ao segundo andar, onde havia um restaurante. Depois, com o esvaziamento econômico da cidade e do aeroporto, e das mudanças que estavam por vir, acabou por abrigar máquinas de fliperama. Cheguei a me divertir com elas.
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Mas o assunto é o Rei Pelé, e nós, que éramos de sua corte. Da vitrine iluminada das miniaturas Matchbox, desviei o olhar e o vi. Eu vi o Rei, tomando seu café, ele também como numa vitrine iluminada, recostado ao balcão do Café Palheta. Eu era uma criança e não lembro o que pensei e minha mãe talvez conte uma história um pouco diferente. Em comum, temos na memória, certamente, os carrinhos Matchbox, o Café Palheta, o domingo no aeroporto. Pelé, possivelmente, teria sua própria versão desse encontro.
Minha mãe o abordou, comigo pela mão. Falaram, conversaram, talvez brevemente. Ela pegou o que tinha na carteira e o Rei acabou por assinar uma foto dos meus dois irmãos. Aquele assinatura que todos nós conhecemos.
Depois disso dirigiu a mim sua atenção e sua gentileza. Ergueu-me, como à Taça Jules Rimet, e colocou-me no braço. Disse coisas que não lembro e me deu um beijo na bochecha. Devolveu-me ao chão, à realidade, com a mesma gentileza real. Talvez houvesse outros jogadores ali com ele, não recordo. Minha mãe, dona Lenira, saberá melhor que eu.
Minha primeira Copa do Mundo, pois participávamos das Copas tanto quando os jogadores, foi a de 1970, no México. Um episódio lendário da narrativa nacional, mas eu era somente uma criança de 3 pra 4 anos, em Fortaleza. Lembro do barulho dos fogos, da festa contínua. Não sei se havia TV ou se era tudo pelo rádio. Lembro de um acidente com uma vizinha amiga, envolvendo fogos. Lembro do sangue, da confusão, azulejos brancos, de um hospital ou de uma cozinha. Brasil tricampeão, algo que não tinha significado pra mim.
Anos depois, não sei quantos, Pelé no aeroporto, no Café Palheta, me colocando no braço. O que isso faz de mim? Uma personagem dessa história de gols, vitórias, contradições demasiado humanas, aviões decolando e aterrissando num sonho distante, em que pequenos carros Matchbox brilham numa vitrine, mais importantes que Pelé.
Tudo isso sumiu. Os carrinhos, o aeroporto, o balcão do Café Palheta. Pelé morreu. Restamos dali, eu e minha mãe, com lembranças diferentes. Versões com pequenos desvios, variáveis do que foi, do que pode ter sido, ou do que queríamos que fosse. Talvez, daquela tarde, o próprio Pelé recordasse apenas da xícara de café, da ansiedade do próximo voo ou do papo com o balconista sobre uma partida de futebol.
A foto dos meus irmãos, ornada pela sua caligrafia esferográfica, é a Pedra de Roseta de toda essa história, porque todo o registro daquilo que vivemos precisa ser encontrado por alguém no futuro, alguém que não sabe do que se trata.
PS. Sempre me frustrou que a foto não fosse minha. Por outro lado sempre me alegrou que meus irmãos participaram, de algum modo, desse encontro.
4 comentários a “O Rei no Café Palheta”
Como não estava não posso recordar,só posso dizer que essa foto sempre esteve conosco ou parece que sempre esteve,a foi autografada porque era o único papel que ela tinha na bolsa,Pelé nos achou “duas crianças lindas” e autografou de lado para não estragar nosso rosto,só posso dizer:Pelé me achou uma criança linda
Ah, porque eram mesmo!
E que bom que mamãe andava sempre com essa foto. Faz a história ainda melhor do que se fosse um simples pedaço de papel.
que inveja, rapaz. acho que sou a única pessoa que não esteve na presença de nossa majestade. digo acho, pois é provável que isso tenha acontecido – porque sou jornalista, porque sou amigo do arrudinha, o único jornalista que o rei atendia sem pestanejar; ele tinha o telefone vermelho do batman. só tive 3 carrinhos matchbox. infelizmente, também se perderam no tempo, juntamente com minha memória.
No mesmo aeroporto vi também o Luiz Gonzaga, mas não teve interação, não teve autógrafos.