Texto de Toinho Castro
Sempre fui de dormir e sonhar, e acordar no dia seguinte como egresso de um mundo mirabolante. Nos meus sonhos encontro pessoas, visito cidades, escuto e conto histórias. Descubro passagens, vejo mares e realizo ou assisto prodígios se realizarem. Sempre fui assim e dormir sempre foi a alegria de visitar e ser visitado por coisas extraordinárias. Prezo muito meu sonhar.
Sempre que deito para dormir digo pra mim mesmo: E lá vamos nós!
Ontem à noite, claro, sonhei. Foi um sonho particularmente curioso, e por isso resolvi compartilhá-lo, e com isso, aproveitar e contar uma outra história. Pois sonhei que estava com essa amiga, pelo menos no meu sonho era minha amiga, e eu contava-lhe um episódio que teria acontecido com a gente, com nós dois. E eu contava a história e ela estava sentada num sofá baixo, e ria muito. Eu estava de pé, empolgado com aquela lembrança e gesticulava, tentando recordar os detalhes da história que eu contava, aos risos também, dizendo: Eu tenho certeza que era você naquela loja. E ela sorria, sem jamais confirmar ou negar.
E a história que eu contava no sonho realmente aconteceu. E foi assim, mais ou menos, que se deu.
Aconteceu de eu estar com um dinheirinho pra comprar um disco. Era fins dos anos 80, creio que 1989. Na missão de comprar o LP, resolvi visitar uma certa loja da Aky Discos, no Shopping Center Recife, que ficava perto do edifício Inês, onde morávamos.
Nessa loja trabalhava a garota do sonho. No mundo real eu não era amigo dela, a quem conhecia somente de vista, de acenos passageiros na faculdade. Ou seria dos bares ou sessões de cinema de arte, que eventualmente reuniam as mesmas pessoas da cidade, em torno de um Godard, Fassbinder ou Truffaut. Ela tinha cabelos curtos, pretos, algo encaracolados, e era meio dark, meio gótica. Talvez, meio tatuada. Assim a recordo. Mas pode ser também que a tenha visto uma ou duas vezes de preto e criei essa lembrança, de uma garota dark no Recife, trabalhando na loja de discos. O nome disso é cinema.
Entrei na loja, cumprimentei-a brevemente e fui folhear os discos, nas seções de música pop ou rock. A loja, pequena, estava vazia naquele meio de tarde não menos vazio, que eu tentava preencher encontrando algo que pudesse acender uma lâmpada em mim.
Foi aí que dei com um disco do Pet Shop Boys. A capa branca, minimalista e ironicamente elegante de Actually, lançado em 1987, me cativou. Eu começara a conhecer o pop eletrônico da dupla inglesa e estava bem animado a levá-lo pra casa. Eu já havia escutado algumas músicas do LP, na casa de amigos. Na casa de Kleber, talvez. Acho que o disco não estava lacrado. Acho que tirei o vinil da capa e, depois, o encarte. Gostava de ver os detalhes, o selo do disco, a ficha técnica. Assim eu me sentia numa loja de antiguidades, analisando um antigo mapa perdido e reencontrado, uma joia rara.
Levei o disco até o balcão, para pagar e sair dali o mais rápido possível, para me trancar no quarto da rua Pampulha e apreciá-lo. Mas eis que… Veja bem, isso realmente aconteceu e eu sonhei contado essa história para a garota da loja, que não não mais reencontrei, provavelmente, desde esse dia. Mas eis que ela pegou o disco do Pet Shop Boys nas mãos, me olhou muito séria e disse:
— Não leva isso não.
Foi até os discos, colocou de volta o Pet Shop Boys na prateleira e voltou com um outro, do qual só vislumbrei, inicialmente, o preto e o vermelho da capa.
— Leva esse aqui! — Sentenciou e me entregou o LP.
Era Tender Prey, de Nick Cave, lançado há pouco por um novo selo, o Stiletto, que estava lançando no Brasil coisas como Durutti Column, Joy Division, Cocteau Twins e o próprio Nick Cave. Eu tinha visto uma reportagem sobre Nick Cave dias antes e pouco conhecia seu trabalho. A capa me impressionou e em tudo parecia oposto ao Pet Shop Boys. Na contra capa uma dedicatória ao ator que interpretara Pixote, no filme de Hector Babenco, o jovem Fernando Ramos, assassinado pela polícia de São Paulo (Curiosamente, no disco, o nome está grafado errado, como Ferdinando).
Aceitei o desafio da moça, que me pareceu auspicioso, e naquela tarde levei Nick Cave & The Bad Seeds para casa. E isso mudou minha vida, daquelas mudanças que somente os discos são capazes de produzir. Ela sorriu e eu também sorri. Realmente não sei se tornei a vê-la depois disso. Mas tenho essa dívida, com essa pessoa que trouxe Nick Cave para minha vida.
Quando assisti ao show de Nick Cave em São Paulo, em 2018, eu lembrei desse dia.
É curioso que a gente conte, na vida real, ou desperta, as histórias dos sonhos, e eu tenha, nesse sonho, contado uma história da vida real. Que belo jogo de narrativas, algo inesperado. E que história, não é mesmo?! Um disco chega e muda tanta coisa, bagunça as perspectivas e nos enche de uma alegria que até então não conhecíamos. O Shopping Center Recife ainda jaz, enorme, dormente, sobre um cemitério de manguezais. A pequena loja da Aky Discos não existe mais e nunca mais vi, a não ser nesse sonho, a garota dark. No entanto os ecos daquele dia ainda vibram, como uma explosão primordial. Ainda escuto Nick Cave como algo novo, que me surpreende e encanta.
E sim, eventualmente comprei o disco do Pet Shop Boys!